segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Análise jurídica do filme "Double Jeopardy" ("Risco Duplo").

Pra começar uma análise jurídica do filme Risco Duplo, entretanto, a análise não é nossa, foi publicada no site Jus navigandi há muito tempo (fonte abaixo) e serve como um ponto de partida, um modelo de como será as análises a seguir.

Risco Duplo (Double Jeopardy) – EUA – 1999 – Suspense – 84 minutos – Produção Leonard Goldberg – Distribuição Paramount Pictures / UIP – Diretor Bruce Beresford, com Tommy Lee Jones, Ashley Judd, Benjamin Weir, Jay Brazeau, Bruce Greenwood, John MacLaren, Ed Evanko, Annabeth Gish, Bruce Campbell, Brennan Elliott, Angela Schneider, Michael Gaston, Gillian Barber, Tom McBeath, David Jacox, Betsy Brantley, Woody Jeffreys, French Tickner, Roma Maffia e Davenia McFadden.

Libby (Ashley Judd) é uma jovem mulher casada com Nick (Greenwood). Aparentemente ambos levam uma vida feliz. Eles têm um filho saudável de quatro anos, Matty, e uma ajudante, Angie (Annabeth Gish), a melhor amiga de Libby.
Justamente quando Libby reclama que seu marido não se interessa por sua grande paixão, velejar, ele compra um veleiro e juntos vão para alto mar. O casal tem uma noite maravilhosa, e Libby acorda no dia seguinte sozinha na cama.

Suja de sangue, ela observa pegadas no chão, segue-as até o deck, onde encontra uma faca. Não há sinal de Nick no barco. A polícia chega, e Libby é presa.

Suspeita do assassinato por ser a beneficiária do seguro de vida de seu marido, cujo valor ultrapassa os dois milhões de dólares, Libby é condenada e implora à sua melhor amiga que adote seu filho. Angie concorda, mas desaparece juntamente com Matty. Com a ajuda das colegas de prisão Margaret e Evelyn, Libby usa o telefone para localizá-los em São Francisco. Por meio da ligação, ela descobre o pior: Angie e Matty estão vivendo com Nick, que armou seu próprio assassinato e adotou uma nova identidade.

Margaret, uma advogada presa por matar seu próprio marido, procura consolar Libby com uma notícia: quando ela sair da prisão, estará livre para matar Nick - no centro de Nova York se quiser - porque ela não pode ser condenada duas vezes pelo mesmo crime.

Seis anos mais tarde, Libby recebe a condicional e fica aos cuidados de Travis Lehman (Lee Jones), um cínico oficial de condicional assombrado por seus fracassos no passado. Lehman não tolera a menor quebra de regras, mas Libby imediatamente viola a condicional para achar Matty e Nick. Embaraçado com a fuga, Lehman fica obcecado em capturar Libby, enquanto esta procura por seu filho.

Começa, então, uma terrível perseguição que, ao final, resulta no assassinato de Nick por Libby. Por já ter sido condenada por esse crime, Libby deixa o local do delito sem qualquer óbice por parte dos policiais que ali se encontram.

Para aqueles que se interessam pelo mundo do Direito, o filme em comento permite uma análise interessante da questão proposta: a possibilidade de se matar alguém, após ter sido condenado e ter cumprido a pena pelo homicídio dessa pessoa, que na verdade continuava viva. Neste caso, não pode haver novo julgamento e, conseqüentemente, não haverá condenação.

A problemática trazida pelo filme diz respeito a uma norma presente no ordenamento jurídico americano, bem como em outros sistemas de Common Law, qual seja, o Double Jeopardy.

O princípio do double jeopardy estabelece que ninguém será submetido à persecução penal pelo mesmo fato delituoso por duas vezes. Segundo decisão da Suprema Corte Americana, no caso U.S. versus Halper, o Double Jeopardy protege o acusado contra três espécies de abuso: [1] uma segunda acusação pelo mesmo fato delituoso após ser absolvido; [2] uma segunda acusação pelo mesmo fato delituoso após ser condenado; e [3] várias punições pela mesma ofensa.

Explica, ainda, a Corte que jeopardy, nesse contexto, "significa estar em perigo de uma condenação, isto é, ser processado por um ilícito penal. Uma vez que o veredicto foi alcançado, a menos que haja mistrial (julgamento incorreto), apenas a defesa tem o direito de requerer uma nova ação penal ou apelar. Já tendo sido exposto ao perigo de uma condenação por determinado fato delituoso, o acusado não pode responder por tal delito novamente". (Nós traduzimos)
 
Pelo estudo do double jeopardy feito na seção anterior, percebemos que, no ordenamento jurídico brasileiro, podemos encontrar o mesmo instituto no Princípio do Non Bis in Idem. Segundo esse princípio, o réu não pode ser processado e condenado novamente pelo mesmo crime.

De fato, embora as nomenclaturas sejam diferentes, trata-se do mesmo princípio. Tanto é assim que o STF, ao julgar o pedido de extradição nº 688 por meio do Relator Ministro Francisco Resek, expõe que "ninguém pode expor-se, em tema de liberdade individual, à situação de duplo risco. Essa é a razão pela qual a existência de situação configuradora de ‘double jeopardy’ atua como insuperável causa obstativa do atendimento do pedido extradicional. Trata-se de garantia que tem por objetivo conferir efetividade ao postulado que veda o ‘bis in idem’ ".

Contudo, mister se faz diferenciar os efeitos desse instituto no ordenamento brasileiro. No que tange à possibilidade de recorrer de uma sentença absolutória, não se aplica aqui o que foi visto anteriormente. A revisão de uma sentença por uma instância superior é garantia constitucional das partes processuais.
No que tange às decisões do tribunal do júri, em virtude da própria soberania do Conselho de Sentença, as possibilidades de apelação são elencadas e vinculadas àquelas permitidas no Código de Processo Penal (art. 596 CPP).

Logo, no ordenamento jurídico pátrio, existe possibilidade de a acusação recorrer de uma decisão do Júri, desde que amparada pelas causas estabelecidas no CPP.

Conforme dito alhures, ninguém no ordenamento jurídico pátrio ou no Sistema do Common Law pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato criminoso, sob pena de ferirmos o Princípio do non bis in idem ou double jeopardy. Ocorrendo um evento como o apresentado pelo filme, estamos diante da possibilidade de o particular deter o poder da vida e da morte de outrem em suas mãos. Perguntamos: é permitido a um indivíduo matar alguém, já tendo sido condenado e tendo cumprido pena pelo homicídio deste?

Ao leitor mais desavisado, é possível a idéia de que o caso que aqui se analisa é tão-somente uma obra de ficção, impossível de ocorrer na vida real. A este, revelamos o caso dos irmãos Naves, de Araguari/MG.
Os irmãos Naves - Sebastião e Joaquim - foram as vítimas do maior erro judiciário cometido no Brasil. Viviam em Araguari, Minas Gerais. Em 1937, hospedaram um primo, Benedito Pereira Caetano, que desapareceu depois de ter vendido uma carga de arroz. Torturados pela Polícia e obrigados a confessar que haviam matado o primo, os irmãos foram condenados a vinte e cinco anos e seis meses de prisão, apesar de não haver prova do crime e nem mesmo o corpo da suposta vítima. Dez anos mais tarde, o "falecido Benedito" apareceu vivo em outra cidade, e os Naves foram libertados.

Perguntamos novamente: neste caso concreto, seria permitido aos irmãos Naves matar Benedito, pois já haviam sido julgados, condenados e haviam cumprido pena pelo homicídio deste, não podendo, portanto, serem julgados novamente?

A nosso ver, a resposta é não.

No Estado Democrático de Direito, a legalidade é principio basilar, há sujeição ao império da lei. A democracia envolve convivência numa sociedade livre, justa e solidária em que o poder emana do povo e em seu proveito deve ser exercido.

A busca desta convivência é norteada pela Constituição Federal e leis de cada Estado Nacional. No Brasil, a Carta Magna de 1988 garante a todos o direito à vida, primordialmente no artigo 5o, Caput, considerando-o um direito fundamental em sentido material, ou seja, indispensável ao desenvolvimento da pessoa humana; é o que Pontes de Miranda chama de supra-estatal, procedente do direito das gentes ou direito humano no mais alto grau.

Alexandre de Morais afirma que este é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência de todos os demais. E acrescenta: "a Constituição Federal proclama o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência ". [06] (grifamos).
Logo, não nos parece possível, diante da ordem constitucional vigente em nosso país, que alguém condenado pelo homicídio de uma pessoa possa, ao saber que esta continua viva, matá-la e sair impune, pelo simples fato de já ter sido condenada por esse delito.

José Luiz Quadro Magalhães ensina que "o direito à vida, pela sua dimensão, deve ser um direito que, em nenhuma hipótese, possa ser retirado". [07] Tampouco, tratando-se de hipótese de erro judicial.
Não restam dúvidas de que o erro judicial desta magnitude é terrível, inescusável, retira de um inocente o direito à liberdade, também fundamental em um Estado Democrático de Direito. Entretanto, existem outros institutos pelos quais o Estado, que detém a atividade jurisdicional, é compelido a reparar seu funesto engano.

Na esfera criminal, devem ser apuradas as responsabilidades daqueles que de alguma forma contribuíram, culposa ou dolosamente, para o julgamento equivocado, com conseqüente condenação nos crimes para os quais concorreram. No caso do filme, aplicando-se a lei brasileira, Nick pode responder criminalmente pelo falsum, Falsa Identidade (Art. 307 CPB), Estelionato (Art. 171 CPB) em relação à seguradora, e pelo delito de Denunciação Caluniosa (339 CPB).

Na seara cível, cabe a propositura de ação de indenização por perdas e danos (materiais, morais e à imagem) em desfavor do falsário e contra o próprio Estado. Dependendo do grau de culpa ou dolo do magistrado que presidiu o Júri e do promotor que procedeu à acusação, são cabíveis ainda ações pessoais em desfavor dos mesmos, conforme doutrina administrativista minoritária liderada por Celso Antônio Bandeira de Mello.

Embora nenhuma quantia em dinheiro seja suficiente para apagar as marcas que tal erro provoca na vida de uma pessoa, resta ao injustiçado tão-somente o instituto das Perdas e Danos. É inadmissível, na ordem constitucional em que vivemos, que o particular tenha o direito ou o poder de tirar a vida de uma pessoa.
Mesmo em uma situação de legítima defesa, em que o bem da vida se encontra ameaçado, é com cautela que devemos analisar se não ocorreram excessos, mas tão-somente a ocorrência da referida excludente de ilicitude.

Logo, o direito à vida, em qualquer situação, deve ser sempre preservado e protegido pelo Estado, cabendo a aplicação de outros institutos do ordenamento jurídico vigente para minimizar situações oriundas de erros da prestação jurisdicional.

Outro motivo que não nos permite concordar com a situação exposta no filme é que os homicídios traduzem-se em fatos delituosos distintos, sem relação ontológica entre si.

Assim sendo, o segundo delito deveria ser punido por ter sido praticado sob circunstâncias diversas de tempo, espaço, motivo, dentre outras. Fossem os delitos considerados o mesmo fato, impediria, por exemplo, que alguém fosse julgado pela segunda tentativa de homicídio contra a mesma vítima. Ora, a segunda tentativa constitui um fato inteiramente novo, assim como o segundo homicídio apresentado no filme. Logo, deveria o autor ser punido com todo o rigor permitido pela lei.

Pelo exposto, seja pela interpretação principiológica da Constituição, seja pela análise fática dos "dois" homicídios (um simulado e outro real), entendemos não ser possível uma pessoa praticar o assassinato de alguém e sair impune, apenas pelo fundamento de já ter sido condenada por este fato ilícito.

Ainda que esteja em vigor, em nosso sistema jurídico, o Princípio do non bis in idem, é inadmissível, sob a ótica de nosso ordenamento, que a situação mostrada no filme ocorra. Como forma de se manter a ordem social, sempre que acontecer um crime de homicídio, o Estado tem o dever de investigá-lo, julgar e condenar os infratores nas penas que lhes couberem.

O princípio em destaque aparentemente confere legitimidade a essa situação, mas este não pode prevalecer sobre outros princípios que resguardam, inclusive, os pilares de um Estado Democrático de Direito: não há Liberdade sem vida, não há Igualdade sem vida e não há Fraternidade sem vida.
Logo, no nosso sentir, o filme analisado apresenta uma situação que não encontra amparo no ordenamento brasileiro, sendo abominável o reconhecimento de sua ocorrência em nossa sociedade.

Fonte: BRAGA, Sérgio Jacob. Direito e ficção: análise jurídica do filme "Double Jeopardy" ("Risco Duplo"). Direito comparado. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1215, 29 out. 2006. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/9099>. Acesso em: 25 dez. 2010.

O Direito e a ficção

Há algum tempo atrás, zapeando pela internet, vi um site em inglês intitulado “Law and the Multiverse: Superheroes, supervillains, and the law” (“Lei e Multiverso: super-heróis, supervilões e a lei”)" que trata de uma análise jurídica dos gibis.
Assim, achei interessante a ideia e juntando uma antiga mania de tentar encontrar explicações em tudo quanto se vê na ficção (que estudante de direito não se pegou perguntando sobre um acontecimento numa novela?) é que começamos neste empreendimento.
A partir de agora, até mesmo como uma forma de estudar, iremos analisar o que acontece na ficção, seja nas novelas do dia-a-dia, seja nas séries, nacionais ou internacionais, seja em livros, tudo com um olhar nas leis do nosso país.
Mas uma ressalva se coloca, não temos o condão de querer desmitificar a ficção, pois se tudo fosse feito na estrita legalidade, perderia toda graça, não acham?